O entendimento das dependências como comportamentos compulsivos tem sido tradicionalmente associado às substâncias psicoativas. No entanto, nos últimos anos foram identificados desafios que implicaram ampliar a abordagem e as respostas, levando a que se passasse a adotar a designação de CAD – Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD, 2013)

 

Os comportamentos aditivos são entendidos como “processos de adição”, comportamentos com características impulsivas-compulsivas em relação a diferentes atividades ou condutas, que envolvem um potencial de prazer. A continuidade e a perseverança deste tipo de comportamentos, coexistindo com outros fatores neurobiológicos, psicológicos, genéticos e ambientais, poderá evoluir para dependência (SICAD, 2013). Por dependência entende-se um conjunto de fenómenos fisiológicos, cognitivos e comportamentais que se podem desenvolver após o uso repetido da substância, levando a comprometimento ou sofrimento nas diversas áreas de vida do sujeito.

 

Durante muito tempo este conceito esteve associado ao consumo de substâncias psicoativas (todas as que, sendo naturais ou sintéticas, quando consumidas, alteram o funcionamento do sistema nervoso central), caracterizando-se por um “desejo intenso de consumo, descontrolo sobre o uso da substância, continuação dos consumos independentemente das consequências, alta prioridade dada aos consumos em detrimento de outras atividades e obrigações, aumento da tolerância e sintomas de privação quando o consumo é descontinuado” (SICAD, 2013).

 

Mas será que podemos desenvolver um comportamento aditivo / dependência sem existir uma substância que é ingerida?

 

A resposta é sim.

 

A perturbação de jogo apresenta semelhanças em termos cognitivos, neurobiológicos, genéticos e comportamentais com a dependência de substâncias (Cavedini, Riboldi, Keller, D’Annucci & Bellodi, 2002; de Ruiter et al, 2009; Goudriaan, Oosterlaan, de Beurs & van den Brink, 2006; Christensen, Jackson; Dowling, Volberg & Thomas, 2015).  Consistindo numa “ conduta repetitiva que produz prazer e alívio tensional, sobretudo nas suas primeiras etapas, e que leva a uma perda de controlo da mesma, perturbando severamente a vida quotidiana, a nível familiar, laboral ou social, que pode acentuar-se no tempo e conduzir a uma dependência” (Referencial de Educação para a Saúde, 2017).

 

Também como frequentemente se observa nos Comportamentos Aditivos e Dependências com substância, no jogo verifica-se um enfoque gradativo no objeto aditivo em detrimento da priorização das atividades que commumente promover o prazer humanizado, associado às experiências relacionais, familiares, trabalho, lazer, entre outros. Observa-se, também, um agravamento da deterioração psicossocial, com o isolamento do indivíduo da relação com o meio envolvente, e comorbilidades no plano psiquiátrico (SICAD, 2017).

 

Este tipo de conduta tem vindo a receber uma atenção crescente por parte da comunidade científica e dos clínicos ao longo das últimas décadas, acompanhando a evolução tecnológica mundial bem como a globalização do acesso a dispositivos eletrónicos / rede web / oportunidades de jogo um pouco por todo o mundo.

 

 

Em que consiste a perturbação de jogo?

 

A inclusão da problemática do jogo na nomenclatura psiquiátrica surge pela primeira vez em 1980, aquando do lançamento da 3ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM III), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), sendo, na altura, denominado como Jogo Patológico.

 

A definição dos critérios de diagnóstico resultou da identificação de situações clínicas em que os indivíduos experienciavam uma progressiva perda de controlo face ao jogo, traduzindo-se numa incapacidade em resistir aos impulsos para jogar (Temcheff et al., 2011; Reilly & Smith, 2013).

 

Esta condição era descrita como a presença de um impulso irresistível a participar num ato prejudicial ao próprio e aos outros, existindo aumento de tensão antes do ato, prazer ou alívio durante o mesmo e sentimentos de culpa ou arrependimento depois (Petry, 2006). À data, foram propostos 7 items que enfatizavam a influência negativa destes padrões de comportamento ao nível da dinâmica pessoal, familiar e laboral, bem como no domínio financeiro  (Temcheff et al., 2011; Reilly & Smith, 2013). Seguiram-se revisões e novas edições do DSM que, obedecendo à evolução da evidência científica, reviram os critérios, de forma a espelhar as semelhanças com o Diagnóstico de Dependência de Substâncias (Reilly & Smith, 2013).

 

 

Em 2013, com o lançamento do DSM-V, verifica-se uma mudança na conceptualização das perturbações aditivas, e a Perturbação de Jogo (anteriormente designada jogo patológico) deixa de ser incluída na categoria de Perturbações do Controlo dos Impulsos, para passar  a estar integrada no grupo das Perturbações Relacionadas com Substâncias e Perturbações Aditivas, mais concretamente no subgrupo das Perturbações não Relacionadas com Substâncias (Clark, 2014; APA, 2013), definindo-se como um “comportamento problemático, persistente e recorrente, em relação ao jogo, que conduz a mal estar e défices clinicamente significativos (…) ”, aos quais estão associados sintomas de craving (impulso / necessidade de jogar), tolerância (necessidade de jogar progressivamente mais tempo para obter satisfação) e abstinência (inquietação ou irritabilidade quando se tenta reduzir ou deixar de jogar) (DSM-V). Passa a ser explícita a correspondência entre o jogo patológico e as perturbações aditivas. O ato de participar equiparou-se, em certa medida, ao ato de consumir (SICAD, 217).

 

Em suma, esta perturbação cursa com episódios frequentes e consecutivos de jogo, os quais acabam por dominar a vida do indivíduo em detrimento de valores e compromissos sociais, ocupacionais, materiais e familiares. É comum que aqueles que sofrem desta perturbação ponham em risco o seu trabalho, contraiam grandes dívidas e mintam ou violem a lei para obter dinheiro e evitar o pagamento das suas dívidas. Por norma referem um ímpeto intenso de jogar, o qual é difícil de controlar, assim como uma preocupação com ideias e imagens do ato de jogar e das circunstâncias que lhe estão associadas. As referidas preocupações e ímpetos surgem frequentemente em períodos de maior stress (SICAD, 2017).

 

 

A Perturbação de Jogo envolve apenas jogos “de apostas” ?

 

Não.

As perturbações associadas ao jogo englobam o gambling, que envolve mecanismos de apostas, montantes financeiros, risco e o gaming, que pressupõe interatividade e indicadores de sucesso e de progressão (Vilar, Duran, Torrado, 2017; Clark, 2014). Assim como as perturbações associadas à dependência de tecnologia envolvem um consumo abusivo e/ou descontrolado das plataformas e redes digitais (por exemplo, redes sociais, jogos online).

 

 

Qual a dimensão deste fenómeno em Portugal?

 

Conforme já referido, a investigação clínica no âmbito deste tipo de comportamentos tem vindo a sofrer um claro impulsionamento no campo internacional, no entanto os estudos nacionais acerca deste fenómeno são ainda escassos.

 

Os estudos realizados por Balsa et al. (2015) indicam que a prevalência de jogo a dinheiro em Portugal é de 65,7%, sendo mais elevada no género masculino e na faixa etária entre os 34 – 44 anos. A prevalência afigura-se como superior em indivíduos inseridos no mercado de trabalho e que detêm um grau médio de escolaridade (2º e 3º ciclos e ensino secundário). No que diz respeito à relação das práticas de jogo com outro tipo de comportamentos, os dados sugerem uma relação direta entre a prevalência da prática de jogos a dinheiro, consumos mais nocivos de álcool e a prevalência de consumo de outras substâncias (SICAD, 2017).

 

 

Relativamente às práticas de gaming, os dados do European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs (ESPAD, 2015) indicam, de forma semelhante à média europeia, no nosso país cerca de 20% dos jovens utilizam a internet para práticas de jogo de forma regular (pelo menos 4 vezes nos últimos 7 dias). O jogo online é consideravelmente mais comum entre os rapazes (39%) do que as raparigas (5%).

 

 

Estamos todos vulneráveis?

 

A última década tem sido fértil na produção de literatura científica relativamente às bases etiológicas dos comportamentos aditivos sem substância, tendo sido diversos os fatores associados à emergência deste tipo de problemática. Não obstante, os dados existentes carecem ainda de investigação que suporte de forma consistente nexos de causalidade (SICAD, 2017).

 

Grande parte da literatura existente neste domínio versa sobre a identificação dos fatores de risco (numa lógica de prevenção) para o desenvolvimento da perturbação de jogo, através de estudos de natureza transversal, junto de adolescentes. Não obstante esta limitação, os referidos estudos contribuem para o conhecimento de dados importantes, como sendo a identificação de aspetos que incrementem a probabilidade do aparecimento de problemas de jogo (SICAD, 2017).

 

Neste sentido, estudos realizados com população jovem salientam os seguintes fatores como mais associados à emergência de problemas de jogo (Dowling et al., 2017):

 

 

Área Sócio-Demográfica Família e Comunidade Funcionamento Psicológico Comportamentos Aditivos
●        Género Masculino

●        Baixo nível sócio-económico

●        Inconsistência disciplinar parental

●        Adversidade precoce e conflitos familiares

●        Dificuldades escolares

●        Contacto regular e precoce com contexto de jogos

●        Extroversão

●        Impulsividade

●        Sensation seeking

●        Estratégias de coping desadaptativas

●        Sintomas de hiperatividade com défice de atenção

●        Stress e afeto negativo (sintomas ansiosos e depressivos)

●        Início precoce de práticas de jogo

●        Uso de substâncias psicoativas

●        Pares com comportamentos aditivos

●        Pais com comportamentos aditivos (com e sem substância)

 

 

 

Importa salientar que, apesar das relações estabelecidas entre os referidos fatores e problemas de jogo, muitas crianças e adultos expostos a fatores de risco, não desenvolvem este tipo de morbilidade, o que sugere a presença de um conjunto de fatores que desempenham um papel protetor. Neste domínio, designa-se por fatores protetores aqueles que estão associados a um decréscimo de probabilidade da emergência de problemas de jogo, independentemente da exposição a fatores de risco ( Lucier et al., 2014 cit in SICAD, 2017).

 

Contrariamente aos fatores de risco, os estudos acerca dos fatores protetores no âmbito dos problemas de jogo, são parcos. Ainda assim, a literatura salienta os seguintes fatores como protetores relativamente aos problemas de jogo (adaptado de Dowling et al., 2017):

 

 

Área Sócio-Demográfica Família e Comunidade Funcionamento Psicológico
●        Género Feminino ●        Supervisão parental

●        Coesão Familiar

●        Ligações Sociais

●        Boa relação com a escola

●        Consciência e inteligência emocional

●        Estratégias de coping adaptativas

●        Bem-estar subjetivo

●        Auto-cuidado

●        Competências pessoais e sociais

●        Compreensão da aleatoriedade

 

Na perturbação de jogo, a existência de comorbilidades é bastante frequente. Em alguns estudos, mais de 70% dos indivíduos identificados como jogadores patológicos apresentavam perturbação do uso do álcool e mais de 30% de outras substâncias. Apesar de alta comorbilidade sugerir tratar-se de perturbações do mesmo espectro, outras condições psiquiátricas são igualmente frequentes, como por exemplo perturbações dos afetos, do controlo de impulsos e da Personalidade ( Petry, 2006, cit. in  SICAD, 2017).

 

Alguns autores têm vindo a teorizar sobre as perturbações aditivas sem substância , e em particular sobre o jogo, como um problema de saúde pública, em virtude do comprometimento psicossocial frequentemente envolvido, bem como da existência de comorbilidades associadas. Considerando que a prevalência do jogo acontece mediante a acessibilidade e oferta de novas formas de jogar (ex: raspadinhas, novos jogos online), facilmente se compreende o potencial de vários problemas emergentes (SICAD, 2017).

 

 

Existe tratamento?

 

Sim!

 

As abordagens ao tratamento da perturbação de jogo têm sido maioritariamente adaptadas a partir dos modelos pré existentes para o tratamento dos outros comportamentos aditivos e dependências. As abordagens cognitivo-comportamentais junto de pessoas com problemas de jogo têm sido estudadadas (ex: Larimer et. al, 2012; Tolin, 2010; Petry et. al, 2006; Pallesen et. al, 2005) e os dados recolhidos reunem as evidências mais consistentes no que diz respeito à eficácia do tratamento para este tipo de perturbação (Cowlishaw et. al, 2012).

 

A perturbação de jogo envolve comportamentos aprendidos desajustados e desadaptativos. A intervenção cognitivo comportamental focada nos problemas do indivíduo procura modificar os pensamentos irracionais e crenças relacionadas com o jogo e que parecem sustentar a manutenção do comportamento de jogo. Ao longo da terapia os pacientes aprendem e posteriormente implementam novas estratégias para interromper e modificar esse comportamento aditivo (SICAD, 2017).

 

Beatriz Abreu – Psicóloga WeCareOn