A importância dos impactos da saúde mental nas populações pode ter consequências dramáticas tal como é explicado neste artigo que aborda um estudo feito a nível nacional sobre a taxa de suicídios nos últimos anos e as suas possíveis motivações.

 

 

Portugal em sofrimento: vendem-se mais antidepressivos e há mais suicídios

Número de suicídios em 2014 é o mais alto de sempre, mas não se pode comparar com anos anteriores. Especialista quer que tranquilizantes fiquem mais caros, para evitar abuso.

 

A tradição diz que Portugal é um país com uma taxa de suicídios baixa no contexto da União Europeia. Mas a realidade pode ser bem diferente: se aos números de suicídio registados em 2014 somarmos 20% das mortes de causa indeterminada, como recomendam os especialistas, Portugal passa a estar já num nível que justifica alarme, pelos critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS). O alerta surge no relatório Saúde Mental em Números 2015, que esta quinta-feira foi apresentado em Lisboa e é assumido pelo diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho, para quem esta estimativa pode, de facto, colocar Portugal “em níveis próximos do vermelho”.

 

“Se considerarmos a perspetiva internacional de que 20% das mortes registadas como de causa indeterminada são suicídios, a taxa de incidência subirá dos atuais 11,7 para cerca de 15 por 100.000 habitantes, valor que, para a OMS, nos colocaria entre os países a quem é recomendado maior alerta”, lê-se no relatório.

 

Apesar de todas as cautelas, e sempre notando que os números de 2014 não se podem comparar com os dos anos anteriores – porque a metodologia de apuramento de dados passou a ser diferente com o novo sistema de certificados de óbito eletrónicos (antes a recolha era feita em papel) -, é visível a preocupação dos especialistas, até porque os últimos dados disponíveis indicam que se mantém “a tendência, iniciada em 2010, de taxas em crescimento [de suicídio] nos grupos etários dos 40 aos 64 anos”.

 

O facto de o total de suicídios na fase ativa da vida ter aumentado, tal como o suicídio em mulheres (297 contra 920 homens em 2014 em todo o país, incluindo Açores e Madeira), são sintomas de que a crise se fez sentir, para alguns especialistas.  O acréscimo de suicídios em mulheres, tradicionalmente mais resilientes, merece uma análise à parte, assume Álvaro Carvalho, que pediu também um estudo aprofundado às mortes em idades mais jovens. “Provavelmente estes dados podem ter que ver com a crise, devido ao aumento do desespero, associado a depressão e ansiedade. Mas não se pode, só com um ano, retirar conclusões”, frisa o psiquiatra. É certo, admite, que muitos cinquentenários com ideação suicida repetem a frase de que são muito novos para serem reformados e muitos velhos para trabalhar. “Mas continuam a ser os homens com mais de 65 anos que vivem sozinhos e que sofrem de doenças crónicas os que mais se suicidam”, sintetiza.

 

Os resultados obtidos num estudo coordenado por Paula Santana, em que foram analisados três intervalos de tempo nos últimos 20 anos (1989-1993, 1999-2003 e 2008- 2012) e recolhidos os dados da mortalidade por suicídio e auto-agressão, ajudam a perceber também que está a mudar o padrão da mortalidade por suicídio – cuja distribuição geográfica era tradicionalmente menor na região Norte e maior no Sul.

 

Este padrão tem vindo a esbater-se ao longo dos anos, devido ao aumento das taxas no Centro e no interior Norte. Razões? “À parte do crescimento do desemprego e da emigração, a austeridade contribuiu também para o decréscimo no suporte ao transporte de doentes a quem haviam sido prescritos cuidados hospitalares de ambulatório (como hospital de dia e reabilitação)”, ensaiam, em jeito de explicação, as autoras.

 

Na comparação das taxas de suicídio entre os Estados-membros da União Europeia em 2011, em números brutos, Portugal continua a surgir com uma das mais baixas, a par de outros países do sul da Europa. No entanto, “quando consideramos a faixa etária dos 65 e mais anos, verificamos que a taxa de suicídio em Portugal é superior à média europeia para ambos os sexos”, por causa da taxa nos homens, que é superior à média europeia, lê-se no documento.

 

Demências afetam 160 mil

Quanto à evolução das taxas de mortalidade por doenças atribuíveis ao álcool, esta não apresenta uma variação substancial nos últimos cinco anos, tendo até diminuído ligeiramente. “Os dados são concordantes com outros indicadores relacionados com os padrões do consumo do álcool, nomeadamente com a diminuição do consumo per capita em Portugal entre 1990 e 2010”, concluem os autores do relatório.

 

Na prescrição de medicamentos, as benzodiazepinas (ansiolíticos, sedativos e hipnóticos) continuam a motivar preocupação, porque são drogas potencialmente de abuso e apenas atuam nos sintomas. Apesar dos alertas repetidos nos últimos anos, o ritmo da prescrição não desceu. Para alterar este consumo que se situa “em níveis de risco para a saúde pública”, Álvaro Carvalho defende a diminuição da comparticipação estatal destes medicamentos vulgarmente designados como tranquilizantes, o que levaria ao aumento do seu preço e, eventualmente, a um decréscimo das vendas.  A agravar o problema, as benzodiazepinas mais receitadas em Portugal (alprazolam e lorazepam) são das que têm maior potencial ansiolítico e, consequentemente, maior potencial de tolerância e dependência, lê-se no relatório (em 2014, os portugueses consumiram 91.496.345 doses diárias de alprazolam e 65.851.064 de lorazepam).

 

Mas o que aumentou substancialmente, entre 2010 e 2014, foi o consumo de antidepressivos. Vendem-se cada vez mais antidepressivos (ultrapassaram mesmo os tranquilizantes), mas ainda não estamos “em níveis que justifiquem alarme”, sustenta o psiquiatra. Álvaro Carvalho explica que os antidepressivos são utilizados tanto para tratamento de depressões como de perturbações de ansiedade, pelo que se justifica a evolução do consumo.

Também o grupo de “estimulantes inespecíficos” cresceu mais de 110% entre 2010 e 2014. Por isso mesmo é posta em causa a prescrição de elevadas quantidades de medicamentos, nas crianças e jovens, para tratamento da hiperatividade. “Quer os pediatras quer os pedopsiquiatras frequentemente recebem pais com cartas de educadores infantis e professores do ensino básico a pedirem-lhes para receitar anfetaminas. Será por pressão dos laboratórios?”, questiona Álvaro Carvalho. “Uma coisa é a instabilidade, outra é a hiperatividade”, sublinha o psiquiatra, adiantando que há um grupo de peritos a avaliar esta matéria e que já foram pedidos, ao Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento), dados mais completos.

 

De igual forma há uma especial atenção com o grupo de idosos. Um estudo feito num Agrupamento de Centros de Saúde do Norte permitiu perceber que um terço (35,9%) sofre de perturbações mentais e, numa amostra aleatória deste grupo, foi encontrado défice cognitivo em 88,3%, sendo que em 7,8% do total deste défice é grave. Nos idosos a viver em lares a taxa de défice cognitivo grave duplica e coloca-se a hipótese (ainda a necessitar de estudo) de que poderão estar sobremedicados.

 

Nesta faixa etária, o grande problema são as várias formas de demência, uma epidemia que se estima afetar cerca de 160 mil pessoas, 90 mil das quais na forma mais conhecida, a doença de Alzheimer. O que se sabe, para já, é que, num inquérito conduzido entre dezembro de 2014 e junho de 2015 (1476 pessoas), 44% disseram ter tido uma experiência com um membro da família. A demência aparece, aliás, como a terceira causa de maior “receio”, a seguir ao cancro e aos acidentes vasculares cerebrais (AVC).

 

Fonte: Alexandra Campos – Jornal Público (16/03/2017)

 

Hélio Borges – Psicólogo clínico WeCareOn