Neste artigo apresentamos, de forma sucinta, o que significa trabalhar a Criança Interior numa perspetiva psicoterapêutica. Procuraremos dar resposta a perguntas como as seguintes: O que é a Criança Interior? Como se manifesta na idade adulta? Como sabemos que a Criança Interior precisa de ser trabalhada? Que abordagem segura poderá ser utilizada em psicoterapia? Este é um tema cada vez mais visível e que suscita curiosidade, pelo que gostaríamos de contribuir para o seu esclarecimento.
O que é a Criança Interior?
Enquanto seres humanos, todos/as temos uma história, uma sucessão de acontecimentos. Ao longo destes eventos, contamos várias “histórias” sobre nós, sobre os outros e sobre o mundo exterior, encontrando significados e explicações. Esta narrativa parece ser moldada pelas experiências que vivemos desde o nascimento, o que impacta nos significados que construímos ao longo de todo o ciclo de vida.
As experiências durante a infância e juventude parecem ter especial impacto nesta construção, dado que se constituem como as suas fundações, e porque resultam das primeiras relações que estabelecemos com Outros. Não significa, porém, que esta construção é imutável, determinando de tudo o que vem a seguir. Significa que a cada experiência é integrada nova aprendizagem sobre o Eu, os Outros e o Mundo Exterior, e isto acontece ao longo de todo o ciclo de vida. De facto, em cada ciclo de vida existem necessidades mais presentes para as quais buscamos naturalmente respostas, como a necessidade que um bebé tem de pertencer a uma família e ser cuidado, tocado e amado, ou a necessidade de autonomia e independência na adolescência.
As soluções a cada necessidade vão surgindo, baseando-se em aprendizagens anteriores, nas novas experiências e sensações (emoções, pensamentos, sentidos e perceção corporal) e nas respostas que obtemos das pessoas que nos rodeiam nesse momento. Fazemos, por isso, o melhor que sabemos e podemos a cada momento. Como descreveu o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, “Eu sou eu e minha circunstância“, isto é, o potencial psicogenético que uma pessoa traz é indissociável dos contextos pelos quais passa e das experiências de vida consequentes. Somos a soma da biologia e da história de vida.
A Criança Interior é como a base da síntese psicológica de todas as idades ao longo do ciclo de vida, desde a infância, passando pela juventude, idade adulta, até à velhice. Neste processo cada idade não é deixada para trás, mas é incorporada como sendo uma parte do Todo que somos. Uma vez que cada parte de nós inclui aprendizagens essenciais, quanto melhor conseguirmos manter cada uma destas partes viva e presente, mais saudáveis sermos.
A Criança Interior é, portanto, uma parte integrante do desenvolvimento humano, independentemente da qualidade das experiências vividas ao longo da história.
Como se manifesta a Criança Interior na idade adulta?
Apresentando dois extremos de uma mesma linha de possibilidades, alguém com uma infância que lhe trouxe sentimento de pertença, sensação de ser amada e aceite incondicionalmente terá uma Criança Interior tendencialmente serena, curiosa e com uma boa capacidade de autorregulação, caraterísticas que se manifestam na idade adulta e que contribuem (mas não determinam!) para uma resolução saudável dos desafios a cada momento.
No outro extremo, alguém com uma história recheada de eventos traumáticos, nos quais se sentiu ameaçado ou negligenciado, terá uma Criança Interior tendencialmente assustada ou zangada ou profundamente magoada, que precisou de aprender estratégias de sobrevivência. Estas estratégias, embora provavelmente disfuncionais e obsoletas na idade adulta, serão as preferencialmente usadas sempre que situações semelhantes possam estar a acontecer a esta pessoa agora adulta.
Quando o desenvolvimento de uma criança é de alguma forma condicionado por emoções reprimidas (especialmente raiva e tristeza/mágoa), quando há necessidades da criança que não foram devidamente respondidas, esta pessoa pode transformar-se num/a adulto/a com uma criança zangada e magoada dentro de si.
De forma espontânea, esta criança parece contaminar o comportamento adulto. É possível observar por vezes este fenómeno quando, perante uma situação que ao longo da nossa vida nos causa desconforto (ou sofrimento) damos por nós a agir “como uma criança”, seja porque explodimos de forma inesperada, seja porque nos refugiamos e escondemos sem perceber bem porquê.
Como sabemos que a Criança Interior precisa de ser trabalhada?
Mesmo numa pessoa adulta funcional e saudável, pode acontecer por vezes que essas experiências difíceis da infância tenham agora um papel importante: alertar (a um nível subconsciente) quando uma situação parecida esteja a acontecer (ainda que remotamente) e assim ativar as estratégias que provaram (na infância) ser as mais eficazes para lidar com ela. Algumas dessas estratégias são, porém, disfuncionais na idade adulta…
Mas então, se todos/as passamos por situações parecidas com estas, significa que todos/as temos que trabalhar a Criança Interior? Talvez não. A psique tem uma capacidade maravilhosa de aprendizagem e regeneração, uma plasticidade que nos permite encontrar estratégias mais eficazes a cada momento. O trabalho da Criança Interior surge quando nos deparamos com dificuldades persistentes e que causam sofrimento significativo, contaminando a nossa vida pessoal, profissional, familiar e outras áreas, ou quando representamos risco para nós e/ou outros (APA, 2014). Falamos então de resgatar e regenerar a Criança Interior Ferida. Eis alguns exemplos de sinais de alerta:
1. Identidade difusa e sensação de desconexão com os próprios sentimentos, com as próprias necessidades e desejos (sensação de não saber quem se é e/ou do que se precisa para se sentir completo);
2. Relações de dependência, procurando em algo exterior a sensação de identidade e de estar vivo/a (dependência de substâncias ou de pessoas, comportamentos impulsivos e desregulados como jogo ou sexo ou compras, entre outros);
3. Comportamentos impulsivos e/ ou irresponsáveis, sem assumir responsabilidade pelos próprios atos, que causam sofrimento e si e/ou aos Outros;
4. Busca incessante por amor, afeto, atenção, nunca sendo suficiente, independentemente de como ou de quem vem;
5. Dificuldades em estabelecer relações saudáveis de confiança. A intimidade torna-se um desafio seja pelo excesso (relações e mais relações falhadas com sucessivos desgostos por se confiar demais) seja pela escassez (não se confia nunca). Confunde-se intensidade com intimidade, obsessão com cuidado, controlo com segurança;
6. Dificuldade em estabelecer limites saudáveis para si e/ou para os outros;
7. Dificuldades em lidar com “erro” e fracasso, alimentadas por crenças disfuncionais de perfecionismo em relação a si e/ou aos outros;
8. Dificuldades em lidar com vergonha tóxica, alimentada por crenças disfuncionais de insuficiência (“não sou suficiente, sou defeituoso/a”);
9. Dores no corpo sem causa orgânica ou funcional, persistentes e que causam sofrimento significativo, tais como problemas gástricos, tensão e dor muscular, dor de cabeça, quadros fibromiálgicos e de artrite. A propensão para ter acidentes ou quedas pode também ser aqui considerada com sinal de alerta;
10. Quadros de depressão crónica (distimia) e resistente.
Que abordagem segura poderá ser utilizada em psicoterapia?
O conceito da Criança Interior vem sendo encontrado nos estudos e obras que abordam a saúde mental, especialmente desde o advento da psicanálise e da psicologia analítica no início do século XX. Carl Gustav Jung é um dos autores a quem é atribuído o uso da designação Criança Interior (Jung & Kerényi, 1969), nomeadamente no estudo dos arquétipos. Jung realçou a ligação entre a manifestação da Criança Interior no adulto com as experiências passadas (Infância e juventude). Vários autores têm focado o seu trabalho na forma como as necessidades respondidas (e não respondidas) na infância e juventude parecem afetar a expressão global do ser humano e a sua relação com o mundo exterior.
Naturalmente, o trabalho de resgatar e regenerar a Criança Interior deverá ser integrado num trabalho terapêutico mais vasto e completo, realizado em terapia de forma sustentada e segura. É um processo doloroso porque implica viver a cicatrização das nossas feridas. Realça-se que é um processo, não é um só evento! E por implicar atravessar a dor emocional, este trabalho deve ser cuidadoso já que se assemelha a um luto, mas um luto que escolhemos fazer. Trata-se de decidir que o Eu Adulto identifica, valida, acolhe e, a partir de agora, cuida e trata da Criança Interior, um compromisso que assume consigo próprio/a.
Será, portanto, um trabalho continuado e inacabado ao longo do ciclo de vida. O contexto terapêutico permite suportar o início deste trabalho, resgatar recursos e capacidades para que seja depois um caminho autónomo e seguro.
John Bradshaw (1992) sugere voltar à história através das fases desenvolvimentais (idades) e terminar assuntos não resolvidos. Cada fase da vida tem tarefas e necessidades, emoções que devem ser expressas, lutos por fazer, um caminho de regresso a “Casa”, à nossa verdade e autenticidade.
Deixa-se uma nota final pela importância que tem neste tema e que se relaciona com o perigo da culpabilização das figuras de vinculação (pais, avós, ou outras figuras que prestaram cuidados na infância). Em nenhum momento do trabalho terapêutico de resgate e regeneração da Criança Interior Ferida se visa encontrar culpados ou vilões da história. Também não se procura desculpar ou justificar comportamentos disfuncionais, seja de quem for. Visa-se devolver, à Pessoa agora adulta, o poder pela própria vida e pelas escolhas próprias, e acompanhar essa mesma pessoa no caminho de descoberta da Criança Interior, validando o sofrimento, legitimando o que sentiu (sente). Visa-se tornar a Pessoa adulta mais capaz de escutar as suas necessidades por responder, as emoções por expressar enquanto criança e as atuais, transformando-se na sua própria cuidadora, responsável por si mesma, pela sua saúde plena.
Pelo exposto até aqui é possível enquadrar de forma mais clara este trabalho terapêutico numa lógica tendencialmente psicodinâmica e analítica, já que se busca na história de vida da pessoa momentos/fases cuja resolução das tarefas se quer que seja suportada e realizada de forma mais funcional. Embora não signifique que apenas alguém com formação de base psicanalítica possa realizar este trabalho, sugere-se que este seja realizado por um/a profissional que se identifique com esta abordagem, nomeadamente que valide e acolha uma abordagem terapêutica narrativa, na qual se centra na Pessoa como agente de construção de significados ao longo da vida.
Cláudia Andrade (Psicóloga)
Criança Desprovida
Joias preciosas estão por todo o lado no cosmos e dentro de cada um de nós.
Quero oferecer-te uma mão cheia delas, minha querida amiga.
Sim, esta manhã, quero oferecer-te uma mão cheia, uma mão cheia de diamantes que brilham desde a manhã até ao entardecer.
Cada minuto da nossa vida é um diamante que contém
o céu,
a terra,
o brilho do sol e o rio.
Precisamos apenas de respirar gentilmente para que o milagre seja revelado:
Pássaros cantam, flores que desabrocham.
Aqui está o céu azul, aqui está a nuvem branca flutuante,
o teu olhar amoroso, o teu sorriso bonito.
Tudo isto está contido numa joia.
Tu que és a pessoa mais rica da Terra
e te comportas como um filho desprovido,
por favor regressa à tua herança.
Que possamos oferecer-nos mutuamente felicidade
e aprender a mergulhar no momento presente.
Que possamos nutrir a vida nos nossos dois braços.
E que nos libertemos do nosso esquecimento e desespero.
Thich Nhat Hanh
(tradução livre do poema no livro Reconciliation – Healing the Inner Child)
Cláudia Andrade (Psicóloga)
Para este artigo foi realizada uma pesquisa que inclui as referências seguintes: