Dia 10 de Outubro é o dia mundial da saúde mental. Para celebrar este dia deixaremos algumas notas sobre a importância de apostar na esperança face à inevitabilidade de quase todos nós, mais cedo ou mais tarde podermos ter que nos relacionar com alguma forma de doença mental.

 

A nossa motivação é, de algum modo lançar “sementes” de atitudes positivas e encorajadoras face ao poder e responsabilidade de cada um de nós na prevenção da doença mental e no investimento em estilos de vida que facilitem o equilíbrio emocional.

 

Nesta reflexão abordaremos

  1. A prevalência das doenças mentais no mundo de acordo com a OMS;
  2. O conceito de recovery no âmbito das intervenções terapêuticas actuais;
  3. A importância das pessoas mudarem a forma como encaram a doença mental e seu prognóstico;
  4. Um exemplo de boas práticas no âmbito do acompanhamento de um grupo de pessoas com doença mental, realizado entre 2017 e 2019 em Braga através do Projecto – Intercomunicare.

 

 

A prevalência das doenças mentais no mundo de acordo com a OMS

 

Neste dia mundial da saúde mental importa falar de contributos que coloquem a tónica na urgência de adoptar políticas, atitudes e compromissos que promovam a saúde mental.

 

Não existe bem-estar pessoal na ausência de saúde mental. Todo o desenvolvimento humano e civilizacional tem por base a garantia da saúde do cidadão, de um modo geral, e da saúde mental em particular.

 

O crescimento económico e a erradicação da pobreza, passam, em grande medida pela garantia de políticas eficazes e eficientes no campo da saúde mental. Desde a prevenção, tratamento e diminuição de recaídas.

 

De acordo com o relatório mundial da saúde da OMS (2018), 450 milhões de pessoas de todo o mundo sofrem, em qualquer momento da sua vida, de doença mental. Falamos de patologias psiquiátricas, neurológica, demências, perturbações comportamentais e comportamentos aditivos diversos desde a alcoolismo, substâncias ou as novas formas de adições tais como o uso compulsivo da internet, jogos online ou as compras e consumo abusivo, entre outras.

 

Acrescente-se ainda que, no âmbito das doenças neuro-psiquiátricas, as perturbações depressivas ocupam o quarto lugar dentro das dez primeiras enfermidades mais prevalentes e, ainda de acordo com a mesma fonte, estima-se que em 2020 a depressão seja a psicopatologia mais prevalente.

 

O conceito de recovery no âmbito das intervenções terapêuticas actuais

 

Perante tal cenário é urgente que os profissionais da área da saúde adoptem práticas cada vez mais interdisciplinares com ênfase na integração comunitária dos cidadãos tratados. O desafio que se coloca aos profissionais das áreas da psiquiatria, neurologia, psiquiatria, psicologia e restantes especialidades médicas vai para além das abordagens mutuamente exclusivas. A reabilitação em saúde mental obriga a intervenções claramente sistémicas nas quais a grande dificuldade é a capacitação dos profissionais da saúde para metodologias de trabalho que permitam planificar, concretizar, monitorizar e avaliar programas terapêuticos holísticos.

 

O cidadão com doença mental apresenta-se com diferentes graus de dependência psicossocial, seja na esfera profissional, social, familiar e pessoal.

 

Ainda hoje, em muitos países, a doença mental é encarada como a “última paragem”. Sendo representada como um processo ou um estado que, uma vez diagnosticada, será condição para a vida toda. Muitas pessoas continuam a subscrever uma expectativa fatalista sobre a agudização e irreversibilidade das limitações decorrentes das doenças mentais. Uma das implicações destas percepções reflecte-se no estigma social associado à distinção entre as doenças mentais e as outras. Estigma este que é, quase sempre, factor de sofrimento adicional quer para os cidadãos com doença mental quer para as suas famílias.

 

As intervenções e os programas terapêuticos a realizar, na área da saúde mental só terão impacto e eficácia na medida em que permitam capacitar a pessoa para a recuperação de um nível óptimo de funcionamento independente e integrado nas suas comunidades de origem. Deverão contrariar a desinserção social e descontrair o estigma social inerente às perturbações psiquiátricas e psicopatológicas. Esta linha de pensamento e trabalho tem sido largamente investigada pelo Professor José Ornelas (ISPA) no âmbito dos seus trabalhos em psicologia comunitária.

 

A possibilidade de fomentar a recuperação do funcionamento independente da pessoa com doença mental e a sua conexão/integração na comunidade de origem (seja o local de trabalho, a escola, universidade, círculo de amigos, centro desportivo, actividades sociais e lúdicas) vem ancorar no conceito de recovery.

 

A importância das pessoas mudarem a forma como encaram a doença mental e seu prognóstico

 

O conceito de recovery surge a partir dos trabalhos de Patricia Deegan em 1988. Trata-se de um conceito enraizado no estudo qualitativo das verbalizações de pessoas que em algum momento das suas vidas se confrontaram com uma trajectória de patologia psiquiátrica/psicopatológica.

 

Recovery não é sinónimo de recuperação nem de cura. Não se refere a um produto final ou a um resultado. Quando falamos em recovery não estamos a querer dizer que a pessoa está curada. Em muitos casos há que aceitar que a doença psiquiátrica será uma realidade  “a viver com” para o resto da vida. E essa situação também é muito habitual em diversas patologias médicas, deficiências físicas, amputações de membros, doenças autoimunes, oncológicas, diabetes e tantas outras.

 

Infelizmente, quando a cronicidade diz respeito ao foro psiquiátrico a dificuldade de aceitação e a capacidade de acreditar que existe vida mesmo na condição de aprendermos a relacionarmo-nos com a patologia/limitações é algo que exige muito apoio, muito acolhimento, muita intervenção séria, honesta e comprometida por parte de toda a rede social da pessoa.

 

A pessoa é a personagem principal da reconstrução do seu sentido de identidade e da gestão das suas escolhas, apesar das limitações inerentes à patologia. Tal processo tem que acontecer a um nível intrapsiquíco/pessoal, sem dúvida, mas em simultâneo com o comprometimento do seu parceiro/parceira, familiares, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, ou seja: em sintonia com a comunidade da qual a pessoa é parte integrante.

 

Quando esta sinergia acontece, normalmente, a pessoa atinge um estado de recovery. Há na pessoa um sentimento renovado de empowerment/empoderamento. As pessoas que verbalizam e actuam o recovery salientam o sentimento de se redescobrirem como actores principais das suas histórias de vida e de perceberem em si uma motivação/esperança para fazerem as suas próprias escolhas, quebrando as barreiras do isolamento. Havendo recovery, há nas pessoas um reatar das suas interacções com as organizações, com o trabalho, com as comunidades lúdicas, associativas entre outras.

 

O correlato do processo de recovery é nos retratado pelas pessoas na vivência de maior auto-estima, confiança e inquestionavelmente na auto percepção da qualidade de vida

 

Um exemplo de boas práticas no âmbito do acompanhamento de um grupo de pessoas com doença mental, realizado entre 2017 e 2019 em Braga através do Projecto – Intercomunicare

 

Enquanto profissionais de saúde mental e, subscrevendo a posição do Professor Pio Abreu, é nossa obrigação orientar os actos terapêuticos com base na esperança. E a investigação científica, através do conceito de Recovery vem dar fundamento empírico a essa intuição clínica.

 

Nos dias 8 e 9 de Março de 2019, no âmbito do Congresso Internacional de Saúde Mental e Psiquiatria que decorreu na Universidade do Minho, muitas foram as evidências empíricas de boas práticas na promoção do Recovery partilhadas por diversos  profissionais da saúde. Não sendo fácil fazer um resumo da riqueza de tantas comunicações realçamos dois eixos principais das mesmas.

 

O primeiro foi a apresentação de todas as mudanças e respostas legislativas no âmbito da implementação dos Cuidados Continuados Integrados na saúde mental e a ênfase crescente em respostas que promovam a inclusão da pessoa com experiência de doença mental na comunidade de pertença. O segundo eixo veio a dar substantivo a essa modalidade de intervenção e foram apresentados os resultados do Projecto InterComunicare – um projecto de intervenção comunitária desenvolvido pela Escola Superior de Enfermagem da Universidade do Minho, sob coordenação da Doutora Ermelinda Macedo e com financiamento pelo programa Norte 2020.

 

Neste trabalho reuniram-se evidências sobre a eficácia de se implementar um guião de acompanhamento domiciliário e comunitário junto de pessoas em recuperação de perturbações psiquiátricas (2017-2019). Estas pessoas apresentaram estabilidade psíquica ao longo do tempo, não tiveram episódios de reinternamento psiquiátrico, foram reintegradas nas suas comunidades de pertença (família, emprego, redes sociais) e expressaram relatos de reconstrução do sentido de identidade e melhorias na qualidade de vida.

 

A realidade parece encorajadora e a mensagem a concretizar é de esperança. A doença mental não tem que ser a “última paragem”. Os profissionais da saúde e a sociedade no seu todo têm cada vez mais o poder e a responsabilidade de incluir e catalisar a capacidade de participação de todos os cidadãos, “apanhados” em algum momento  numa trajectória de doença mental para um processo quase “metamórfico “ onde a re-autoria pessoal e a qualidade de vida se tornam possíveis através do Recovery.

 

Sandra Sendas – Psicóloga Clínica, Membro Efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses: 7821