Pode alguém não saber dizer o que sente? Ser incapaz de reconhecer ou expressar uma emoção? Silenciar os seus sentimentos como um torpedo cego que implode e aniquila o núcleo da sensação? Pode. E o nome disso é Alexitimia.

 

Muitas pessoas pedem-me para falar sobre Alexitimia, pois é um facto que muita gente ignora. É oportuno falar. É importante informar. É fundamental conhecer (para reconhecer) este problema que ceifa emocionalmente a vida a um número cada vez maior de pessoas, tanto em Portugal como em todo o mundo.

 

Os casos têm disparado e é verdade: há cada vez mais pessoas que são incapazes tanto de manifestar as suas emoções (com as palavras e o seu corpo), como de diferenciá-las e expressá-las. Chamam-lhes “frias” ou demasiado “racionais”, mas a alexitimia é acima de tudo um vazio gelado na alma de cada um e uma espécie de analfabetismo emocional.

 

O que é a Alexitimia?

 

Mas afinal, que “palavrão” é este que designa quem não se consegue designar?!

 

Mergulhemos na origem da palavra. Alexitimia vem do grego  “a” – falta, “lexis” – palavra, “thymus” – emoção ou ânimo, e foi cunhada por dois psiquiatras, no final dos anos 60, depois de observarem que muitos doentes psicossomáticos tinham uma enorme dificuldade em falar dos seus próprios sentimentos.

 

 

Apesar de ter sido um conceito inicialmente ligado a este grupo de transtornos, tornou-se rapidamente evidente que a alexitimia estava presente num largo espectro de perturbações, tais como as perturbações alimentares, o abuso e dependência de substâncias, as perturbações de ansiedade e depressão e na perturbação de stress pós-traumático. A investigação sugere ainda uma relação entre alexitimia e perturbações da personalidade, verificando-se uma associação com as perturbações anti-sociais, narcísicas e borderline.

 

Não se assustem, caros leitores, a tecnicidade fria do parágrafo anterior promete abrandar nas próximas linhas.

 

Ou não estivéssemos a (e devêssemos) contemplar hoje, aqui, a importância do que é viver com o caleidoscópio colorido das emoções humanas e o que é, no seu inverso, sobreviver à sombra dessa luz… que no fundo, é o que dá vida aos dias (e ao próprio pensamento). Isto para tentar dizer o quê?

 

Que quando não conseguimos sentir o sentimento, precariamente pensamos o pensamento.

 

Ou noutras palavras, os pensamentos geram sentimentos (e vice-versa), que geram acções, que geram resultados. E se “eu” não penso no que sinto e não sinto o que penso, as minhas acções estarão limitadas a um repertório mais restrito e os meus resultados caminharão à margem do desejado.

 

 

Atentem aos seguintes exemplos (reais):

 

– J., de 42 anos, que tem dificuldades para identificar e descrever os sentimentos próprios e alheios, que veio à consulta com a queixa de que raras vezes chora, mas que quando o faz o seu pranto é intenso, esmagador, desproporcional e que, desde cedo, os familiares mais próximos preocupam-se com o facto de ele não distinguir sensações corporais, como a fome, das emocionais, como o “nervoso miudinho” na região abdominal que produz a ansiedade. Logo, muitas vezes quando sente algo no seu estômago, simplesmente não sabe se deverá comer (se é fome) ou se deverá relaxar (se é ansiedade);

 

– L., de 34 anos, que refere que lhe custa muito diferenciar o que sente, se raiva, medo ou ansiedade e a estas emoções descreve-as mediante expressões gerais (quando questionada, só me sabe dizer se está “bem” ou “mal”, sem poder diferenciar ainda outras emoções e sentimentos como alegria, tristeza, cansaço, irritabilidade ou nervosismo;

 

– T., de 19 anos que vive fechado no quarto e que não consegue interpretar as emoções que lhe rodeiam (nomeadamente, as dos pais e da irmã), o que lhe impede de reagir ante os sentimentos deles, assim como sentir empatia (colocar-se no lugar do outro), ou mesmo simpatia (por quem quer que seja) e que não compreende porque é que todas as pessoas acham que a situação dele “não é normal” e deveria ser observada;

 

– F., de 45 anos, que cansado do insucesso nos relacionamentos amorosos – uma constante ao longo da sua historia de vida – me procura porque as pessoas com quem tenta relacionar-se acabam sempre por desaparecer, e após exploração, percebe-se que em todas estas “relações”, F., por exemplo, raramente empregava o contacto físico para se aproximar, que não conseguia lidar com os momentos em que alguém começava a expressar um sentimento intenso, porque não sabia como agir e não entendia o que o outro necessitava nesse momento: se um abraço, uma carícia de afecto, uma palavra amável ou se qualquer outra coisa;

 

Ah, dizer também que quase todos estes casos têm em comum o facto de, em várias ocasiões, estas pessoas costumarem ir ao médico por supostas dores físicas ou disfunções, que de facto obedecem a estados emocionais.

 

Seja como for, você consegue através do relato deles elementos perceber de que forma, na prática, a alexitimia é ou foi um problema sério na vida destes seres humanos?

 

Não se trata “apenas” de não saber emitir sentimentos. A incapacidade de expressar as emoções é uma desordem com a qual sofrem, em diversos graus, 1 de cada 10 pessoas. E o que acontece? “Nada”… “só” isto: o empobrecimento da vida, das relações e da saúde, de várias formas. E a sensação (descrita por muitos) de “habitar numa casca, um corpo estranho” que é a própria pele.

 

 

Em muitos casos, a impossibilidade de verbalizar e abordar conflitos emocionais ou psicológicos, como a morte de um familiar, uma demissão ou um divórcio, faz com que a pessoa somatize (derive em sintomas físicos, no corpo) favorecendo desde as úlceras e gastrite, até as artrites reumatóides, lúpus, a psoríase ou mesmo o cancro. Assim, uma pessoa com algum grau de alexitimia responde às situações da vida através de manifestações no seu corpo, em vez de com palavras.

 

Além disso, diversos níveis de alexitima nas pessoas fazem operar ainda o seguinte: o impulso (ou a compulsão) para agir (para “passar ao acto”, como dizemos no ‘psicologuês’) que substitui-se à função de pensar.

 

Ou seja, como “eu” não consigo lidar com as emoções, e se elas forem especialmente difíceis, eu fujo, eu substituo aquilo que poderia e deveria ser um pensamento sobre isso por uma acção qualquer (seja drogar-me, seja comer em excesso, seja depois disso provocar vómitos), que por momentos me alivie e amenize a dor de não saber como (com)viver com determinada emoção.

 

Assim, verificamos que a falta de expressão emocional está também relacionada com os comportamentos aditivos e com os transtornos alimentares, como a anorexia e a bulimia. Por outro lado, a convivência é difícil e é origem de muitos conflitos e rupturas conjugais. As pessoas com a “frieza” alexitímica, não compreendem o que acontece com os seus familiares, nem conseguem manter vínculos próximos ou amizades profundas.

 

 

E isto quer dizer que uma pessoa alexitimica é “automaticamente” um sociopata?!

 

Não! Importa saber que a alexitimia é uma perturbação afectivo-cognitiva e não uma perturbação de personalidade, logo têm características diferentes.

 

Existe um conceito, de uso e abuso corrente em Psicologia, que é o da “normopatia”. E o que são os “normopatas”? São as pessoas “patologicamente normais”, que na tentativa desmedida de se sentirem “normais”, como todas as outras, acabam por desenvolver um conformismo extremo pelas regras sociais, que se torna obsessivo.

 

 

Os “normopatas” vivem numa normalidade falsa, desumanizada, sem contacto com a realidade psíquica, sua e dos outros.

 

Acima de tudo, a normalidade pode ser traduzida pelo sentimento de bem-estar consigo próprio e com os outros, sendo uma pessoa capaz de gerir a ansiedade de situações sociais, aprender a comunicar claramente e ganhar carinho, apreço e compreensão por si mesmo.

 

Daí ser tão relevante uma mamã estar em sintonia com as necessidades do seu bebé… Precisamente, pois a expressão consciente do que se sente é uma aprendizagem social, bastante importante nos relacionamentos.

 

Se o ambiente for o adequado durante toda a infância e adolescência, a criança ganha consciência das suas emoções e sentimentos.

 

No entanto, se o ambiente não for o adequado, a criança não só não aprende a reconhecer as suas emoções como as evita. E ainda há mais: existem um conjunto de estruturas mentais que não se desenvolvem da melhor forma, se não receberem a atenção, o apoio e a segurança emocional necessárias, resultando num défice afectivo/cognitivo que pode conduzir à alexitimia.

 

Todas as pessoas nascem com potencial para se desenvolverem emocionalmente, depois o ambiente em que se é acolhido determina o como, e o quanto, esse potencial pode ampliar-se. Um ambiente seguro, caloroso, que responda às necessidades, aberto às emoções, favorece muito um crescimento emocional saudável, em que os sentimentos não são negados ou evitados e sim consciencializados, assumidos, vivenciados. Isto significa que as dificuldades na expressão emocional são mais facilmente adquiridas do que inatas.

 

Desde que o mundo é mundo, a comunicação é fulcral, aliás, é a “cola social” que liga as pessoas umas às outras (e nós connosco mesmos). Portanto a comunicação das emoções e sentimentos – seja por palavras, gestos ou símbolos – garante o início, a continuidade e o fim de todo o tipo de relacionamentos. Assim, quando a boca cala, o corpo fala. Quando a boca fala, o corpo sara.

 

E é aí que os terapeutas, esses seres fofos e maravilhosos (estou a brincar; quer dizer, alguns até são) também podem ajudar.

 

 

Com uma boa psicoterapia, a alexitimia pode melhorar bastante, já que um terapeuta vai ajudar no desenvolvimento emocional.

 

Claro que as pessoas com esta característica, na grande maioria das vezes, chegarão a uma consulta por outros motivos – inclusive por consequências da própria alexitimia, embora não tenham consciência disso, à partida. Com a continuação e o aprofundamento do processo terapêutico, a parte emocional vai sendo despertada, trabalhada, (man)tida num espaço-tempo seguros e no contexto de uma relação terapêutica singular e capacitadora, que permitirão à pessoa compensar, de alguma forma, a falta de aprendizagem emocional desde a infância, com um treino que passe pela busca de elementos que lhe ajudem a diferenciar as suas emoções e a expressá-las de modo básico e mais ajustado.

 

E então, resgatando as vias para (se) sentir e (se) pensar, será criado um terreno mais propenso ao desenvolvimento de acções mais construtivas e os resultados (que se traduzem em melhorias na vida da pessoa) começam a surgir.

 

Sara Ferreira – Psicóloga, Psicoterapeuta, Membro Efectivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses @WeCareOn